Mar 20, 2008

paulo pedra

pondo os poemas para fora da gaveta. este foi já em parte (cortes sugeridos pelo editor e aceites pela escrevente, embora... - comparem-se versões) publicado na "DiVersos", nº 1o, Outono 2006




paulo pedra


1.
Assalta-me a dor
cobre-me o luto
de ti
enquanto sais
a água embotando a alta transparência vidrada da galeria.
recusa seguir-te o rosto descomposto,
dobrado pelo espanto.

na mesa os restos, mancha de chá em círculo,
a taluda que compraste (generoso) para raspar,
não tendo coincidido as figuras da sorte embora.
o homenzito chega a ensaiar novo pedido,
tu inflexível agora —
não voltaste pois a jogar.

Contra os vidros se desfaz a cidade
em escombros a estátua da fonte em frente
ruínas de árvores despenhando-se à tua passagem.

reaprendo então o movimento da língua pedindo ar
as palavras do teu nome. pedra.


2.
Contra ti mil vezes morra
contra ti o tempo.
salgado seja meu ventre contra o teu
gelem os lábios ao mínimo tremor.

Do inferno venho
descabelada
subindo venho este caminho
ao teu encontro.

Foi esta a solidão acompanhada
o retrato de ana sorrindo eterno da cómoda
um pouco mais pálida talvez
sobre nossos corpos bruscos.

Que sabia então do amor ou sua ausência,
caminhando para ti de encontro à morte.
Por todos os lugares do espaço habitavas,
teu nome escrito à minha passagem.
crescia eu para ti sobre todas as coisas.

do medo da força
da mais funda esperança
procurava-te.

Contigo conheci o desamparo, a vil mentira.
Contigo vi falharem as formas da terra e do ar.
Secarem as águas na montanha.
Contra ti o vento degredado se ergueu.

contra ti
sete vezes
contra ti.


3.
Engolem-me hoje as palavras contra ti
amante no intervalo de almoço
soando meus tacões em retirada
ao toque de campainha combinado.
avançavas de rosto em riste até a porta
compunha a saia, surgiam os colegas sorridentes
entrando no escritório um a um.

os óculos escuros livravam-te de suspeitas
o fato atirado contra o corpo cobria o estilo
anti-herói americano, made in portugal.
em nada adiantando porém
a palete ao pôr-do-sol,
com música de fundo.

descias por cordas suspensas no precipício
bebendo às facadas o ar.

éramos o casal ventoso,
alguém diria a dada altura em noite de copos,
carícias entreabertas sob a mesa,
sob o olhar retrovisor enrolados no banco de trás.

Ferozes na palavra e no assalto
corríamos a noite velocíssimos.


4.
Do humor à rendição.
o corpo pedindo sono,
seguiam-se assim
dias e dias.

Perdido andaste,
meu amor partido.
paulo de pedra sobre os olhos.

Contra ti direi ainda as aves do céu
em fúria canora,
paulo da morte contra os ossos.

Em ti perdida
embora em movimento
contra mim caminho,

morto sejas
sete vezes
no meu coração
sanguíneo.

sobre teu rosto
cresçam enfim as ervas.


5.
Da tua sala viam-se sob o lençol do céu
os telhados vazios as pombas sobre o estendal,
frente ao sofá de veludo azul.
Terias posto o avental, uma bebida forte sobre a mesa
cheirava a ti o meu cabelo molhado contra a testa
estava calor. seguias devagar uma receita de lulas:
um pouco de tomate agora, cebolinha, fio de azeite,
panela ao lume.
lias linha a linha gracejando
eu debicava um cigarro,
estendiam-se as pombas
pássaros de asas (embora estúpidos)
em direcção aos olhos

estendiam-se as pombas
para o sol
cantava tua boca sobre a minha.

tudo aquilo em que soía acreditar.


6.
Seja esta história mero estandarte
Que muitas foram as vezes repetidas
Em que te vi sem que te achasse.

Trincava dia afora os versos de eugénio de andrade
tropeço como um cego no ar ao teu encontro.

era a deriva do coração.

a fuga para a fina seca espessura das palavras
vil cabedal de palavras ardendo
semeando paixão e tempestades.

sobre a mais funda aridez
adormecido meu amor a ti tornava
sob a mais leve demora
suspeita crescia em dúvida
uma semente

a própria palavra calava
o que não procurava dizer
e o corpo em frémito breve
percebia a súbita dor.

à morte sete vezes me lançava.


7.
Sentia teu corpo ao perto sempre,
assim nos encontrávamos perdidos,
sabendo só chegar ao nosso encontro
assim nos guia a ti a mim o espaço.

paulo de pedra,
senhor paulo pedra:
onde vai sua palavra
a quem a daria
a quem a dará

penhor grave este
perjúrio.

paulo pedra onde vai tua verdade.

engoles o medo
paulo à noite
quem és tu que
assim alba afora
me persegue,
homem?

o telefone cortando
as horas negras
sua estridência
rente ao sono

rumas à morte
assim por certo
sem pousar teu coração
em meu regaço
tuas mãos sobre meu seio
assim não
partas
dizia paulo,
paulo
dizia.

Mas de novo as gargantas
se soltariam rindo, vencida
a breve espaço a solidão

e a feroz exultação das drogas
nos transportasse embora
fraca, dúctil veio da razão
palavras armadas em conluio,
chamados o saber e o engano
as horas longas.

contra a poesia das palavras
me encostaste.



8.
Por ti trago de herança a dor
partidas as palavras doce engano.
paulo mordaça.

meu manto é o pranto,
seu fulgor.
a dor o meu sinete
agora me cobre o nojo
velada para sempre minha voz

pois a mentira se enrolou em meus cabelos
meu coração deixou a boca,
seu fragor.

emudecem as estrelas.

De longe caminho assim ao teu encontro
repostas as palavras
traves mestras de lugar
por outras mãos.

de onde vens contra a minha ardência?
pergunto de onde vens?



9.
À porta postado servindo
a recepção da festa.
A literatura:
empoado escritor com namorada de estimação
que no-lo queria à viva força apresentar.

de saída repeti herberto helder
matou por amor do amor e isso é do espírito demoníaco
lia sabia os passos em volta com fervor nos intervalos,
terias na mão a flor de madeira prenda tardia de anos.



10.
Contra a parede do king ao fundo,
sustentado pela cor e pelos livros
sorriso irónico macio como mão lenta
pelas costas das palavras,
assim falarias para dizer olá, vieste, cá estás.

Acabara de rever singing in the rain
entrei por isso a sapatear com graça
pelas paredes, rodopiante
sobre as estantes.

Dá-me o teu cigarro,
saber-te de leve contra os dedos,
sofisticado erotismo para início de estação.

era aquela a primeira primavera
de todas a mais viçosa e florida
saltavam as folhas do peito aberto em estranhos ramos.

Sorris contra o vidro da memória
nos perdidos e achados da memória,
trazias os cabelos revoltos em caracóis sob a lâmpada.

Fiquei pois ferida de ti
enamorada
só de te olhar acreditava
mais vasto e terno o mundo.
e de amor apenas me cobria.


11.
O cenário último seria então a sala,
as pratas enegrecidas pelos cantos
já sem luz o isqueiro de tanto chamear.
são teus olhos que brilham agora
a forma da anémona nas pupilas

Comíamos já as lulas quando atendes o telefone
rosto fechado. gesticulas contra a parede
e ela insiste ao que percebo. não venhas dizes
passa depois o silêncio de outro que fala.
não venhas. nem tarde, nem cedo,
não venhas nunca.

Descia as escadas aos tropeções
alumiada por súbita clareira
roda de fuga
vestida em corrida,
as lulas prá puta cas pariu.
merda.

Aberta a porta do prédio, a rua labirintina
escolho em segundo cortante a esquerda
para evitar suspeitas de seguidor

ao fundo segue-me a tua voz
volta onde estás onde vais vem
paulo pedra contra ti
construo a minha derrota.

E eis que tremo, temo. seguindo os subúrbios
pelo autocarro ao nascer da noite,
de novo retomo a espera em queda contra ti
contrária a meu mesmo desígnio
me encandeio.



12.
Sábado ao acordar de rara noite
a dois enrolados sem esforço
os corpos em sono leve
o estore filtrava o sol caindo a pino
listava teu corpo assim tão perto
o prazer de te ver acordar em segredo
pestanas pesadas, corpo dócil.

Na impotente tristeza que precede a separação
o duche era já prenúncio de degredo
abriam-se súbitas, novas delícias ao toque
brilhando os corpos sob a água.


Estava um dia glorioso
os pássaros seriam agora amplos
imensos lentos pela mão pesada do calor
e as laranjas moldavam-se à sede.

Sabendo breve o tempo de te querer
pedi para me levares ao mar.
leva-me paulo ao mar
leva-me ao mar.



13.
Parecia um script de mau cinema:
retornos rupturas regressos revoltas repetições

tanta estéril, ignara insistência.

Percebo agora que falhas
por cobardia e por cansaço.

Assim me deixaste dada por morta,
enfim na mesa do café,
seria Abril a
data para o final
de meus desvelos.

Longos anos crescem em mim
ainda, até que esgote o veneno
da tua presença
e sejas efígie vã.


14.
no dia azul avançava
a palavra marinha
pedindo água

em golpe trocado
era afinal a tarde
de ana legítima
aquela mulher.

Muito se disse deste duplo amor,
enganosas vis peias da sorte contra ele,
enleado

no antigo enredo de suas lúgubres tristezas
não pôde paulo matar o rei seu tio
nem livrar o coração de dupla escolha,
seu poderio, não
pôde a mão comandar
desejo, desenlace.

Sete vezes seu nome maldigo
do cimo deste monte
contra si voem os anjos terríveis do amanhecer
para jamais sobre esta terra repousar.


15.
Entrego o luto
nestas linhas.
declaro nada
mais ter
a dizer.

sele-se agora
minha boca
contra ti.


chegado será o tempo
do repouso e do perdão.



Fevereiro 2003

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