Mar 13, 2008
algas
Algas
(1995-2004)
Quero contar as férias de Verão na colónia balnear
as tardes sentada sob o arco de pedra
soltando sombra a rezar o terço
Fervorosa devoção
que me deixou fechada na nave lateral da igreja no colégio
frente ao altar de um Santo adivinhando
por entre o escuro das lágrimas a porta
atrás do reposteiro de veludo
guiada talvez pelo Senhor, subi
a galeria atravessei o terraço sobre o claustro principal
arrombei a porta do corredor das aulas, era de noite
desci as escadas e fui apanhada pela D. Hilda
(Senhora Dona, de direito)
No fim-de-semana organizavam-se com os pais de visita
piqueniques no raro bosque de pinheiros frente à via-rápida:
forte de Sto. António de graves lembranças históricas
ímpetos guerreiros da morte do professor Oliveira Salazar
recordada com pesar pelas Mulheres modestas
rematando pequenas ilustrações com morais edificantes:
uma Senhora conhece-se pela maneira como se senta
as túnicas quadriculadas puxadas com nervos
até aos joelhos cerrados, postura das regras
perna descruzada
Em temeroso respeito à Senhora Directora
excelentíssima nos pedidos de saída
sob ameaça de ficar Rogo
a vossa excelência se digne
conceder autorização à aluna número
e os dias da semana contados ao contrário
menos hoje, menos amanhã, menos depois
haverá outras bocas lá fora para
A pedra crescendo nos muros
a torre onde vagueia Madre Paula
freira amancebada com rei barroco
não o poeta de pinhais e barbas ruivas
que D. Hilda criada de menina no colégio
reconheceu de relance, quando o túmulo da igreja
se viu aberto nas Invasões Francesas
foi o mosteiro fundado por
este mesmo rei que aqui jaz,
de acordo com promessa feita à Virgem
em suas coutadas de caça no Alentejo
vendo-se perseguido por besta ferocíssima
de grande porte e piores intenções
era um urso e D. Hilda diminui
nariz adunco curvado para o xaile
fazendo lenda
sem querer morrer nunca
de novo espantada pela má-criação das
mais jovens gerações que se perseguem
dizia-se que
caminhava à noite pela linha
de mosaicos claros nos longos corredores
com vela tremeluzindo nos cabelos brancos
soltos enfim do toutiço armado
Ou as veredas da quinta
por onde fugíamos
coladas às plantas
iludindo a vigilância até ao muro
junto ao rio que ladeávamos
em planos de fuga sonhando os montes
já invadidos por grupos de prédios desolados
Sob as colunas góticas do claustro principal
nas tardes baças de Outono
na fragrância das campânulas amarelas
que pendiam em cachos dos arbustos
comendo uma romã acocorada
junto aos vasos acres das sardinheiras
procurando adivinhar
num arrepio de perigo alheio
restos de cinza, beatas
das alunas negativas
a comportamento
acreditávamos o mundo tão fácil,
abençoadas pela espantosa clareza
da ciência e da religião
No Inverno subia as escadas
até à Enfermaria e esperava a vez
tremendo ao contacto das cadeiras de metal
contra as pernas nuas, enrolava-me
sob os cobertores ásperos
estava cansada
nas camas reclináveis de colchões duros,
inquietavam-se as médicas cercando-me
problemas em casa, amores perdidos?
receitavam-me valeriana estava cansada
Na primeira noite as camas rangiam
pela camarata imensa sussurros
medo do escuro aos dez anos
alguém chorando sob os cobertores
a monitora de serviço
Gertrudes de nome
que entretanto casou e ficou melhor apesar de
acendeu com brusquidão as luzes,
encadeando a Virgem que dormitava na prateleira
ouvidas há pouco as preces,
e declarou com verve não suportar
tamanha indisciplina, irreverência
(adjectivo que guardei para designar incurável rebeldia)
a primeira a fazer barulho ia imediatamente para casa
havia tantas meninas que gostariam de ali estar
nos nossos lugares
honroso título
Odivelas
cega ao absurdo da ameaça, invadia-me o terror de tão vil regresso ao lar
enxovalhada na farda castanha feita à medida
a mala com o enxoval encomendado
os pais envergonhados ao canto da imagem
que tantos sacrifícios por nós faziam
Era para nosso bem
Aos quinze anos, ainda sem namorado
tive um sonho erótico:
músculos adolescentes nus no chuveiro
esqueci pormenores, foi talvez na Primavera
quando a álea das mimosas tornava excessivo o ar,
contei-o às outras na reentrância da janela
entre risos olhando a quinta ao regressar
do refeitório havia chá e torradas com mel pássaros
depois o lanche passou a ser de pé:
sumo com carcaças amontoadas em cestos
cobertos por largos panos de algodão
saindo a manteiga em excesso para os dedos
que ficavam impressos nas páginas
dos livros proibidos
As paredes brancas o labirinto de
escadas os interditos os
olhos para guardar
cada gesto as
cartas abertas os
portões fechados os
sons chamando de fora,
camionetas
Colégio fundado em 1900 para que
as filhas dos oficiais ausentes em serviço no Ultramar
ou órfãs
(discriminadas como nos bons romances de Dickens)
fossem educadas no amor à Pátria e no temor a Deus,
anuncia o painel de azulejos na Portaria
Domingos de regresso
Falava, então,
de uma tarde enevoada
em que fomos à praia,
o marido da professora
de ginástica,
único homem na colónia,
fora visitas esparsas do capelão de batina,
grande e peludo
contra o ímpeto das ondas,
ensinava-nos a nadar,
a maré trouxera
algas
viscosas
que
se enrolavam
ao corpo.
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